quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A Fantasia pode ser orquestrada

Fugindo do usual, cheguei em cima da hora. Deixei os meus problemas à porta, como sempre. Se eles se recusam a entrar comigo, fazer o que, não é? Talvez não gostem do ambiente pacifico da orquestra. Adentrei os corredores do Teatro Nacional como um furacão, tropeçando em notas de Lá, que brincavam como crianças levadas, antes do professor entrar em sala de aula. Não sei se as pessoas prestam atenção nesta hora da afinação dos instrumentos. É como a minha família discutindo. Vários palpites ao mesmo tempo. Um violino fala daqui, uma flauta responde dali, o violoncelo aparece todo cheio de razão até o momento em que as luzes começam a piscar, sinalizando que em poucos minutos o concerto irá começar.

Havia uma leveza diferente no ar. Os músicos não conseguiam esconder certa empolgação. Sorrisos misteriosos davam lugar à seriedade padrão das apresentações. Ao pegar o programa, daquela que não seria uma terça-feira típica, pude ver um recesso programado para a semana seguinte. Quando me preparava para soltar um "Poxa, mas nem é feriado..." li na programação que a orquestra estava se preparando para um concurso internacional na Coréia do Norte, e adivinhem só: na bendita "semana seguinte". Compreendi, então, que aqueles sorrisos nada contidos exibiam um misto de receio e ansiedade, daquele que seria o último ensaio público antes da grande competição.

O teatro nacional é obra de Niemayer, logo, basicamente se restringe à beleza de sua arquitetura. No quesito “acústica” é péssimo. Mas, naquela noite, até o teatro parecia vivo e disposto a se tornar, talvez apenas por aquela noite, o tipo de lugar ideal para uma apresentação daquela categoria. Encontrei meu lugar, sorri para os conhecidos-de-orquestra e me aconcheguei em minha poltrona. As luzes piscaram por três vezes, até que a escuridão tomou conta do teatro, deixando que uma iluminação bem leve pairasse sobre a orquestra, respingando brilho nos rostos resplandecentes daqueles que aguardavam ansiosamente a apresentação. O maestro chegou imponente, debaixo de uma chuva de palmas, se curvou em agradecimento, e sem perder a concentração, subiu no seu pequeno palco, e, com a sua batuta ao ar, ordenou que as notas iniciais abrissem as portas para o céu.

Um banquete gratuito de peças de Tchaikovsky estava ali à minha frente com o único objetivo de me saciar a alma. As primeiras notas dos violinos, que descansavam mansamente sobre os ombros daqueles que os tocavam, traziam consigo uma sensação de conforto quase infantil, recitando pequenos contos de ninar. O violoncelo, que se encaixava perfeitamente entre as pernas dos violoncelistas, adentrou a peça com seu tom mais grave, e não menos importante. Os arcos destes instrumentos orquestravam um xadrez de notas, os violinistas passando levemente o arco na vertical, e os violoncelistas, na horizontal. Uma combinação digna de Vuitton, Gucci e Chanel.

As flautas, os oboés, e seus "familiares", vinham em seguida, dançando pelo ar, como bailarinas esguias, rodopiando em suas sapatilhas, desenhando uma melodia quase hipnótica. Um terremoto? Um gigante? Não. Era o tímpano, pulsante, presente, como aquela tia gorda e bonachona. Em seguida, gritos metálicos produzido pelos trombones, pelas trombetas e toda sua gangue. Então, silêncio. Rápido, mas suficientemente angustiante, seguido das notas emanadas pelas cordas da harpa que deslizavam pelos dedos daquela criatura que mais parecia um anjo.

Com sua batuta indefectível, o maestro comanda os acordes finais da primeira parte da apresentação. Um corte seco deixa as notas ecoando, até que a platéia, estarrecida, se levanta emocionada, assobiando, gritando "Braaaavooo", palmas e mais palmas.

A pianista desliza pelo palco até o piano, recebendo o carinho e o respeito, por meio das palmas infindáveis, acompanhada da expectativa de uma grande atuação. Por parte do público, sempre fiel. De seu marido, o maestro. Da senhora deputada, sua mãe. Dos seus meninos, que vêem naquela mulher um ser indestrutível. Do pai, que ainda vê sua princesinha naquela grande pianista. E a maior cobrança de todas: a pessoal. Um grito de boa sorte preso em minha garganta ganha asas telepáticas.

Ela se senta, aproxima o banco, afasta o banco, regula a altura do banco, até que fique na posição perfeita, para a execução perfeita. Ajeita seu belo vestido, estende os delicados pés sobre os pedais, respira fundo e assente com a cabeça para que o maestro inicie o concerto. Com o leve movimento de sua batuta, o maestro introduz a música que se espalha pelo teatro como uma avalanche descendo uma montanha, ou um tsunami que engloba uma ilha sem avisos preliminares.

E, então, a entrada triunfal das notas do piano. Com os dedos longos, fortes e ágeis, a pianista ataca as teclas do piano como plumas de travesseiro ao vento. Uma seqüência tensa de ritmos e melodias insanas, como um filme de Almodóvar ou Tarantino. E, como num ato de amor, a pianista mergulha de corpo e alma naquele mar de adrenalina musical. Seu corpo se contorcia delicadamente enquanto os braços se esticavam e os dedos percorriam as teclas do piano. A respiração ofegante representava a pulsação de um coração em êxtase. Em alguns momentos podia-se vê-la com os olhos fechados, guiando-se simplesmente pela paixão, pelo instinto, pelo talento, pela destreza. Os cabelos balançavam de um lado ao outro, seguindo o ritmo proposto. Aquela criatura pequena, magrinha, aparentemente frágil, se mostrou o ás do piano sob o olhar silencioso e atônito da platéia.

Ao final, um dueto. Uma discussão amorosa entre o piano e um violino, onde as palavras, ali desnecessárias, não impediam a compreensão de todo o Universo. Os pés dos músicos contavam o tempo, no chão de madeira, como um metrônomo, enquanto os violoncelistas abraçavam seus violoncelos, os violinistas acariciavam seus violinos, a harpista debruçava-se sobre sua harpa, e, todos, aguardavam o último ato, da Fantasia de Tchaikovsky.