sexta-feira, 25 de setembro de 2009

As árvores somos "nozes"

Com toda essa esquizofrenia ambiental, os ipês rosas deram o ar da graça novamente. Desculpem-me os ambientalistas, não é uma apologia à poluição, apenas uma observação, mas é o alerta global mais lindo que já vi. Pena que Dona Sônia está no Piauí. Uma hora dessas, ela estaria toda espevitada com o show-surpresa dos ipês.

O ultimo ipê, o amarelo, floresce em agosto. Já estamos em final de setembro. Nesta época, Brasília deveria estar seca, sofrida. Mas, está toda verde e rosa, como a Mangueira no carnaval. Como num passe de mágica, viajou-se no tempo, já é ano que vem? Ou voltamos ao mês de junho? Alguns provavelmente devem ter ido para o futuro, eu, para variar, fico com a nostalgia e volto ao passado.

Depois de colocar as malas no carro, um espetáculo, digno de cinema, à parte. Os vícios de dona Sônia sempre alimentaram o meu imaginário. Eu já tinha visto de tudo, e na maioria dos vícios, há um controle, ou, de certa forma, uma cura. Mas vovó se tornou um ícone para mim por seus vícios.

O mais famoso é de organização/decoração. Entra ano e sai ano, e cada vez que vou a fazenda, “aparece” mais um aposento, móveis novos tomam conta do recinto, as paredes mudam de cor e os quartos “de lugar”, como se a casa tivesse vida própria.

Sei de histórias macabras sobre como ela colocava mamãe e meus tios para trocar quadros de parede. “Segura aí, deixa eu ver como vai ficar” “Ta torto” Mais pra cima Helio Jr.” “Hélvia levanta esse braço menina”. É, e não eram poucos. Na fazenda tem acervo suficiente para 5 galerias de médio porte. Daria para encher um andar inteiro do Metropolitan.

Dos vícios da minha avó, o que eu mais amo é o vício por livros e música clássica. Ela tem uma vasta biblioteca em seu quarto, da qual já tive o prazer de desfrutar vários exemplares, acompanhados de algum compositor que toca mansamente de dentro do armário da sala.

Mas nessa viagem conheci um novo vício. Plantas. Sim, plantas. Aqueles seres verdinhos que vivem de seiva. E não é aquela famosa erva que dá barato não. As plantas são como filhos e netos para a minha avó. Ela jamais acenderia uma planta.

Depois que vovó se mudou definitivamente para a fazenda, várias concessões tiveram que ser feitas. E cada dia que passava, o jardim ficava maior. Vovô ria e só dizia “Daqui a pouco ela ocupa todo o pasto”. E com toda essa declaração explícita de amor, as plantas não poderiam viajar amarradas na caçamba da camionete.

Eu e minha irmã fomos as primeiras a entrar. Nos posicionamos, enquanto meus tios, coordenados por vovó, encaixavam vasos de plantas como quebra-cabeças, em qualquer espaço existente entre eu, minha irmã e o carro. Lembro perfeitamente de uma plantinha, em especial, chamada Cyca Revoluta, parece um cacto- palmeira, ficou entre meus pés, no chão do carro. Minha avó falou várias curiosidades sobre esta planta, mas o que realmente me marcou foi o preço pago por ela. Naquele momento entendi porque ela tinha que está dentro do carro, como... como uma... neta.

As plantas ocupavam tudo. E se ainda houvesse lugar, com certeza ela arrumaria mais uma mudinha. Além disso vovô levava máquinas e móveis. A caçamba ia abarrotada de coisas. Foi a minha primeira viagem sem retrovisor. Para que não é? “Com tantos outros espelhos...”, acho que a ouvi murmurar.

Mais de 800km de viagem rodeada por plantas. Para que observar a paisagem lá fora, com um mundo a ser descoberto aqui dentro? Qualquer lagarta teria ficado com inveja de mim neste momento. Um rodízio farto e variado. Um verdadeiro jardim de inverno móvel, em plena seca. As plantas deviam estar achando uma delícia toda aquela mordomia, enquanto eu e minha irmã lutávamos contra o cansaço das posições e o medo de pisar, eventualmente, em alguma folha, ou quebrar algum galho. Uma atitude imperdoável.

Infelizmente nem todas as minhas colegas herbáceas conseguiram um lugar no paraíso gelado. Bem que vovó tentou a todo custo. Cheguei a imaginar eu minha irmã na caçamba... Tudo bem, tudo bem. Um pequeno exagero, da minha parte. Mas não acharia estranho se esta idéia tivesse sido cogitada, e até mesmo executada. Mas se aquela pequena árvore viesse na frente, eu e minha irmã teríamos que ficar em Brasília. E quem daria o suporte para as outras plantinhas durante a viagem, não é mesmo?

No entanto, o fato da pequena árvore estar lá atrás, ao vento, foi motivo para que vovó regulasse a velocidade durante toda a viagem. “Hélio, vai devagar”. “Menino, olha o quebra-molas, vai derrubar a planta” “A bichinha vai chegar toda desfolhada”. "Eu, hein"...Típico do nordeste.

Paramos para almoçar, e a viciada já foi dar uma espiadinha no jardim do restaurante. Antes mesmo de decidir o que iríamos almoçar, ela encheu o garçom de inúmeras perguntas. “Que planta é aquela, que tem uma flor assim, uma folha “assado”, blábláblá”. Só nos restava rir e nos deliciar com aquela cena. Ao final do almoço pedimos a conta, e junto à ela veio uma muda da tal planta anexada como um PowerPoint. Só faltou "Pour Elise" de Beethoven.

Naquele momento a única coisa que consegui pensar foi onde colocar mais uma planta. “Só se for na cabeça”, disse minha irmã, como quem lia meus pensamentos. A mais nova aquisição foi na frente com vovó que exibia nos rosto um sorriso satisfeito.

Chegamos a noite. E foi bom termos chegado logo. Eu já estava tendo papos homéricos com a Cyca. Dicas sobre como lidar com ervas-daninhas e receitas de adubos de baixa caloria.

Depois de uma inspeção rápida, vovó constatou que, no geral, as plantas estavam “muito bem, obrigada”. Houve uma perda de folhas ali, uma flor murcha aqui, mas nada que levasse a óbito. Garanto que ela dormiu arquitetando o lote que cada plantinha receberia no dia seguinte. Melhor que o Roriz, eu garanto.

Apesar de toda essa aparente insanidade, todas as vezes que eu vou para a fazenda é como estar em um hotel cinco estrelas em pleno sertão piauiense. Não existe nada melhor que fazer a sesta, deitada na rede, admirando aquele belo jardim, que Dona Sônia dá duro para manter. E se o meu futuro for este, ótimo, minha mãe já começou a trilhar o caminho mesmo... Deve estar no DNA.

9 Comentários:

Às 25 de setembro de 2009 às 16:34 , Blogger Fábio Salgado disse...

Acho que teria desenvolvido o meu lado idílico — se é que existe um — se tivesse algum familiar proprietário de uma fazenda ou ambientalista. Sou totalmente urbano e, embora goste bastante de ipês, sou avesso à Botânica. Legal a sua vó. Simpatizei-me com ela só pela sua descrição.

 
Às 25 de setembro de 2009 às 17:37 , Blogger Unknown disse...

Realmente, a cara da vovó. Quem nunca passou por viagens assim é porque não conhece a peça. Adorei o texto, prima. Muito bom! Tem que continuar :)

 
Às 25 de setembro de 2009 às 19:18 , Blogger Unknown disse...

Muito bom, cissa!!!

Bom tema, bom desenvolvimento, ótimo senso de humor...

Excelente capacidade de observação e capacidade de ver a vida por um ângulo inusitado!

Enfim, todos os ingredientes necessários a um bom texto.

Gostei muito!!

 
Às 25 de setembro de 2009 às 19:52 , Blogger Marcus Henrique disse...

Cissa, adorei o texto! Bem feito e como muito senso de humor. Adorei a menção aos quadros. rsrs. Continue.
Beijo.
Tio Marcus

 
Às 26 de setembro de 2009 às 06:07 , Blogger MENDIGO ENTRE MENDIGOS disse...

Me senti na Miridan....
Tive o privilégio de estar frente-a-frente desse tão bem-cuidado jardim da D. Sônia. Sem contar os sapos que lá estão desde o tempo do barão de Parains.
Gostei dos links Brasília-Piauí !!!
Bjo

 
Às 26 de setembro de 2009 às 19:34 , Blogger Élida disse...

Nossa que figura é Dona Sonia!! Pense, a vontade de conhecê-la...Sua narrativa foi tão verdadeira,que li,reli... Consegui até visualizar o restaurante, sua vó guiando a viagem....Amei seu texto..Já estou aguardando o próximo! Ah os ipês...cenário na vida de todo brasiliense.Super bj
Élida

 
Às 28 de setembro de 2009 às 08:57 , Blogger Cicero Melo disse...

Olha... Isso roteirizado dava um curta, hein? consegui imaginar tudo! Ótimo texto... me deu um pouquinho de paz na minha horinha de almoço! Quem me dera estar naquela rede agora!!!
Escreva mais!

 
Às 28 de setembro de 2009 às 10:07 , Anonymous Anônimo disse...

Oi Cissa, muito bom seu texto. Singelo, quase poético! Dá mesmo um roteiro de cinema, como o Cícero falou...

 
Às 28 de setembro de 2009 às 10:15 , Blogger Rogério Costa disse...

Trouxe uma paz momentânea, imaginar a cena toda, a rede e toda a vastidão de cores e aromas, no balançar!
Muito bom!

 

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