A Fantasia pode ser orquestrada
Fugindo do usual, cheguei em cima da hora. Deixei os meus problemas à porta, como sempre. Se eles se recusam a entrar comigo, fazer o que, não é? Talvez não gostem do ambiente pacifico da orquestra. Adentrei os corredores do Teatro Nacional como um furacão, tropeçando em notas de Lá, que brincavam como crianças levadas, antes do professor entrar em sala de aula. Não sei se as pessoas prestam atenção nesta hora da afinação dos instrumentos. É como a minha família discutindo. Vários palpites ao mesmo tempo. Um violino fala daqui, uma flauta responde dali, o violoncelo aparece todo cheio de razão até o momento em que as luzes começam a piscar, sinalizando que em poucos minutos o concerto irá começar.
Havia uma leveza diferente no ar. Os músicos não conseguiam esconder certa empolgação. Sorrisos misteriosos davam lugar à seriedade padrão das apresentações. Ao pegar o programa, daquela que não seria uma terça-feira típica, pude ver um recesso programado para a semana seguinte. Quando me preparava para soltar um "Poxa, mas nem é feriado..." li na programação que a orquestra estava se preparando para um concurso internacional na Coréia do Norte, e adivinhem só: na bendita "semana seguinte". Compreendi, então, que aqueles sorrisos nada contidos exibiam um misto de receio e ansiedade, daquele que seria o último ensaio público antes da grande competição.
O teatro nacional é obra de Niemayer, logo, basicamente se restringe à beleza de sua arquitetura. No quesito “acústica” é péssimo. Mas, naquela noite, até o teatro parecia vivo e disposto a se tornar, talvez apenas por aquela noite, o tipo de lugar ideal para uma apresentação daquela categoria. Encontrei meu lugar, sorri para os conhecidos-de-orquestra e me aconcheguei em minha poltrona. As luzes piscaram por três vezes, até que a escuridão tomou conta do teatro, deixando que uma iluminação bem leve pairasse sobre a orquestra, respingando brilho nos rostos resplandecentes daqueles que aguardavam ansiosamente a apresentação. O maestro chegou imponente, debaixo de uma chuva de palmas, se curvou em agradecimento, e sem perder a concentração, subiu no seu pequeno palco, e, com a sua batuta ao ar, ordenou que as notas iniciais abrissem as portas para o céu.
Um banquete gratuito de peças de Tchaikovsky estava ali à minha frente com o único objetivo de me saciar a alma. As primeiras notas dos violinos, que descansavam mansamente sobre os ombros daqueles que os tocavam, traziam consigo uma sensação de conforto quase infantil, recitando pequenos contos de ninar. O violoncelo, que se encaixava perfeitamente entre as pernas dos violoncelistas, adentrou a peça com seu tom mais grave, e não menos importante. Os arcos destes instrumentos orquestravam um xadrez de notas, os violinistas passando levemente o arco na vertical, e os violoncelistas, na horizontal. Uma combinação digna de Vuitton, Gucci e Chanel.
As flautas, os oboés, e seus "familiares", vinham em seguida, dançando pelo ar, como bailarinas esguias, rodopiando em suas sapatilhas, desenhando uma melodia quase hipnótica. Um terremoto? Um gigante? Não. Era o tímpano, pulsante, presente, como aquela tia gorda e bonachona. Em seguida, gritos metálicos produzido pelos trombones, pelas trombetas e toda sua gangue. Então, silêncio. Rápido, mas suficientemente angustiante, seguido das notas emanadas pelas cordas da harpa que deslizavam pelos dedos daquela criatura que mais parecia um anjo.
Com sua batuta indefectível, o maestro comanda os acordes finais da primeira parte da apresentação. Um corte seco deixa as notas ecoando, até que a platéia, estarrecida, se levanta emocionada, assobiando, gritando "Braaaavooo", palmas e mais palmas.
A pianista desliza pelo palco até o piano, recebendo o carinho e o respeito, por meio das palmas infindáveis, acompanhada da expectativa de uma grande atuação. Por parte do público, sempre fiel. De seu marido, o maestro. Da senhora deputada, sua mãe. Dos seus meninos, que vêem naquela mulher um ser indestrutível. Do pai, que ainda vê sua princesinha naquela grande pianista. E a maior cobrança de todas: a pessoal. Um grito de boa sorte preso em minha garganta ganha asas telepáticas.
Ela se senta, aproxima o banco, afasta o banco, regula a altura do banco, até que fique na posição perfeita, para a execução perfeita. Ajeita seu belo vestido, estende os delicados pés sobre os pedais, respira fundo e assente com a cabeça para que o maestro inicie o concerto. Com o leve movimento de sua batuta, o maestro introduz a música que se espalha pelo teatro como uma avalanche descendo uma montanha, ou um tsunami que engloba uma ilha sem avisos preliminares.
E, então, a entrada triunfal das notas do piano. Com os dedos longos, fortes e ágeis, a pianista ataca as teclas do piano como plumas de travesseiro ao vento. Uma seqüência tensa de ritmos e melodias insanas, como um filme de Almodóvar ou Tarantino. E, como num ato de amor, a pianista mergulha de corpo e alma naquele mar de adrenalina musical. Seu corpo se contorcia delicadamente enquanto os braços se esticavam e os dedos percorriam as teclas do piano. A respiração ofegante representava a pulsação de um coração em êxtase. Em alguns momentos podia-se vê-la com os olhos fechados, guiando-se simplesmente pela paixão, pelo instinto, pelo talento, pela destreza. Os cabelos balançavam de um lado ao outro, seguindo o ritmo proposto. Aquela criatura pequena, magrinha, aparentemente frágil, se mostrou o ás do piano sob o olhar silencioso e atônito da platéia.
Ao final, um dueto. Uma discussão amorosa entre o piano e um violino, onde as palavras, ali desnecessárias, não impediam a compreensão de todo o Universo. Os pés dos músicos contavam o tempo, no chão de madeira, como um metrônomo, enquanto os violoncelistas abraçavam seus violoncelos, os violinistas acariciavam seus violinos, a harpista debruçava-se sobre sua harpa, e, todos, aguardavam o último ato, da Fantasia de Tchaikovsky.
22 Comentários:
Cissa, apesar de ter vivenciado esse momento, revivi todo o concerto por meio da sua narração. Sua bela crônica musicada me trouxe a imagem de todo o concerto. Parabéns.
Quanto a mim, impedido pelo temporal que caiu, não pude vivenciar tal mágico momento. Entretanto, ao ler esta crônica, assisti todo o espetáculo em casa mesmo. Cecília, tens o dom de manusear, retirar e colocar as palavras certas, nos lugares certos, na gramática e na prosa certa. Cante e decante tudo quanto vier à sua memória. Parabéns!!!
Texto vivo.
Vivo como a orquestra.
Vivo como as personagens: personas personificadas nas frases das músicas e da crônica.
Vivo como a escritora.
Vivo como a vívida experiência revivida ao longo dos parágrafos que nos fazem reviver o belo concerto.
Viva, Cecília.
Viva!!!
U go Girl. This I can read. Thanks for using words we can all understand. Like eating dark chocolate, Rich!
Isolete disse...
Cissa, Menina Grande, como é que você captou tudo isso, você fala claramente como uma musicista, conhecedora de detalhes musicais significantivo para a harmonia de uma orquestra. bravo, bravíssimo, que nível cissa, parabéns!!
Anaaa!
Que orgulho!
Vc só me surpreende,vc é a mesma pessoa ativa, feliz, saltitante escrevendo!
Quando vc escrever um livro vou ser a primeira a comprar!
bjooooooo
Nossa, como escreve bem! Gostei, Cissa! Também tenho uma Cissa e sou amigo de seus pais há décadas... Eles devem estar muito orgulhosos. Bjão
Cissa, o prazer de assistir esse concerto ao seu lado foi estendido até esse momento, lendo sua obra prima. A Fantasia de Tchaikovsky ganhou um "Sol" ainda "Maior" depois de sua belíssima interpretação literária. Parbéns! Prossiga compartilhando conosco seu talento! Aliás, sempre acreditei na carga hereditária do talento humano... beijos,
Marilia Magalhães
Cissa que prazer tenho em ler seus textos. Fico imaginando e realmente vivo cada momento narrado. Linda menina... Parabéns.Espero todo domingo,´depois do cursinho..te reencontrar.
Cissa, não imaginei que assistiria um fascinante concerto na minha própria casa. Uma belíssima narração, que nos transporta para o mundo mágico da música. Bravo!
Cecília, querida!
Bravo, bravíssimo! Se fechar os olhos, posso entrar no teatro, ouvir a afinação dos instrumentos, o zum-zum-zum das pessoas conversando, todos os detalhes enfim. Sua narração é delicada, intensa e viva. Nela as palavras brincam alegremente como notas, os acordes, como você!
Cecilia
Senti-me no Teatro ouvindo a orquestra!
Parabéns!
Cissa, adorei seu texto, muito bom mesmo, sua capacidade de descrever, com emoção e com encanto os sentimentos e emoções dos artistas (maestro e a pianista) foi incrivel!
Pense, se todas as pessoas que estavam na apresentação pudesse e quizesse ler o que vc escreveu, o show passaria a ter um plus/dimensão maior.
Parabéns! Bravo!
Se sinta abraçada, Eunice Santos.
Cissa, tive o prazer de sentir essa valsa de notas. Foi magnífico! Uma viagem sem igual. Vc, minha escritorazinha linda soube repassar, como ninguém, os momentos mágicos apresentados pela pianista e Orquestra na última noite de terça-feira. Toda a apresentação foi maravilhosa. E o solo que a pianista fez. Foi delirante. Isso vc também deixou claro.
Continue, nesse rítimo poético das letras. Vc é fantástica ao juntá-las para descrever algo interessante. Também irei ler, com certeza, o livro que, certamente, sairá de sua cabecinha...Estou curiosa prá saber..qual será o tema a bailar por sua caneta. Bjão Lilian
Viva a música, os sons, as palavras... :)
Guilherme
O mundo é um condutor de ressonância acústica... :)
Cissa,fiquei sem palavras diante de sua narração, foi como se eu tivesse vivenciado o concerto. Como não tenho esse talento maravilhoso do uso da pena, ou melhor das "teclas", só posso parabenizá-la e dizer para continuar transmitindo por meio de sua escrita o que vier a essa mente brilhante
Ciçoca.
Estou orgulhosa, muito orgulhosa, orgulhosíssima de você.Pense numa tia orgulhosa! Sou eu.
Minha inveja por não ter ido a esse concerto, acabou de acabar, pois você conseguiu me transportar de Sorocaba a Brasília em segundos, quando tive a nítida sensação de estar realmente no teatro participando desse evento maravilhoso.
Beijos saudosos.
Um espetáculo o seu relato.
Nunca se cale, pois falar todos podem, mas poucos o fazem com o coração.
Cissa, mudei o MR2M para http://vusbernet.blogspot.com
Não precisa de tanta revolução assim né.
Você poderia colocar um link para seguidores no seu blog, para sempre sermos informados das suas sensacionais postagens.
Leandro Vusberg
Bravo, bravo, bravo. Excelente narrativa, me imaginei no concerto.
Jefhcardoso do http://jefhcardoso.blogspot.com
Maravilhoso. Fui trasportado para o teatro e só voltei pra minha cadeira quando o texto acabou. Parabéns!
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